Madalena
Madalena acorda todos os dias no mesmo horário — 7h da manhã. Ela não precisa de despertador, acorda com o barulho do tamanco da vizinha do andar de cima, que desperta 10 minutinhos antes dela. Madalena faz hora na cama, gosta de pegar o celular e sentir seus olhos arderem com o brilho azul da tela, criando a sensação de alerta que nem a maior xícara de café consegue com ela.
Ela rola o feed por alguns minutos, uns 20 talvez, antes de finalmente criar coragem para levantar e tomar o banho gelado da manhã (Madalena viu no Instagram que isso faz maravilhas para a imunidade). Depois, ela prepara o café da manhã enquanto escuta a rádio local (seria ela a única pessoa naquele prédio de 12 andares a ainda ter um rádio em casa?) e faz apostas com ela mesma sobre a música número 1 do dia. Geralmente ela ganha.
Madalena sai do apartamento com sua calça jeans favorita, regata preta esfarrapada e chinelo havainas enquanto segura os dois sacos de lixo que praticamente imploram para serem descartados. O almoço de dois dias atrás foi salmão e a pele jogada fora exala um dos piores cheiros já sentidos pela humanidade.
Cumprimenta o porteiro, Seu Luís, que responde com um sorriso o seu “bom dia” com esperanças de um dia ser convidado para finalmente conhecer o apartamento de Madalena, que nem desconfia dessas segundas intenções de um senhorzinho tão fofo e simpático como ele.
É sábado e a rotina de Madalena é a seguinte: andar despreocupadamente pelo minhocão, passar na feira para comprar um pastel de frango com catupiry, tomar uma água de côco, ir ao sacolão comprar frutas para a semana e passar na lojinha de R$1,99 para ver as novidades.
Suas compras inúteis foram: um ventiladorzinho portátil de R$9,90, uma caneta brilhante de R$4, uma presilha para o cabelo de R$5,00 e uma bandeira do Brasil por R$15.
Ela volta ao seu apartamento depois de uma breve conversa com Seu Luís sobre como o mamão está absurdo de caro, tira suas havaianas ali perto da porta e, descalça com suas unhas recém feitas e pintadas de vermelho, ela caminha até o quarto que transformou em escritório.
A tinta amarela realmente deu um ar mais vibrante ao cômodo, antes pintado de branco-casca-de-ovo. Madalena sente-se orgulhosa de si mesma, ela quem transformou tudo aquilo e sabe que em algum lugarzinho dentro dela, existe uma decoradora de interiores louca para vir à tona. Usando uma fita 3M (mesmo após prometer jamais usar isso de novo depois de ter visto o estrago na parede da sua sala quando finalmente tomou coragem de tirar o quadro do quebra-cabeça que completou com Rogério na metade de 2020) ela pendura a bandeira do Brasil.
Ela sai do cômodo e entra de novo olhando para tudo como se fosse a primeira vez. A bandeira do Brasil realmente combina muito com o amarelo da parede. A camisa da seleção ficou linda ao lado da vuvuzela! O tapete verde de pelinhos nem parece ter vindo de uma das lojas mais baratas da 25 de março e ficou muito bem embaixo da mesinha que é tão pequena que só consegue ser apoio para uma bíblia aberta bem no meio.
Madalena olha tudo com muito cuidado, centraliza as fotos de Jair Bolsonaro na parede e encara por alguns segundos a maior de todas: a dele com a faixa de presidente do Brasil. As máscaras com seu rosto também estão por ali, assim como o batom e a sombra verde, as tintas para fazer pinturas no rosto e as armas falsas, mas que parecem muito reais, sim senhor.
Já são 11h e Madalena precisa tomar seu segundo banho do dia, Dorival chega em 1h. Dia de banho premium: ela raspa suas pernas com lâmina de barbear, esfolia o corpo com o esfoliante com cheirinho de açaí, hidrata o cabelo com a nova máscara do momento. Com a toalha na cabeça, ela se examina no espelho e arranca alguns pelinhos da sobrancelha e do buço com uma pinça.
No seu quarto, ela faz uma maquiagem leve, prende o cabelo longo em um coque apertado e se veste: blazer vermelho por cima de um vestido preto. Com cuidado, coloca a peruca de cabelos curtos e de tom mais castanho e olha no espelho. Está satisfeita com o resultado. Se arrumou rápido hoje, então senta cuidadosamente no sofá para não amassar a roupa e volta ao feed do Instagram. Mais um lançamento de base! Ela se sente animada para testar. Assiste um vídeo de uma blogueira que diz com todas as letras que essa foi a pior base que já tocou seu rosto e isso dá nela ainda mais vontade de comprar!
O interfone toca.
- Oi, Seu Luís. Sim, pode deixar subir.
Ela espera Dorival atrás da porta do apartamento. Assim que escuta o elevador se abrir, abre a porta para que ele entre rapidamente.
- Não olha pra mim. Vai direto pro quarto. — Ela diz e Dorival obedece, indo até o escritório.
Madalena tem uma outra expressão no rosto, o queixo erguido, uma postura dominante. Assim que entra no quarto, fecha as cortinas e coloca o hino do Brasil para tocar em repeat.
- Sua máscara tá ali. Coloca.
Dorival coloca a máscara com o rosto de Jair Bolsonaro.
- Por que é que você ainda tá de roupa?! Tira logo isso!
Dorival se despe.
- Não tira a cueca. Não quero ver aquela coisa horrorosa e molenga. É pra ficar com essa cueca nojenta. Branca. Coisa mais feia do mundo.
- Comprei pra você…
- É ridícula. Igual você. E não fala comigo sem eu autorizar.
Dorival concorda com a cabeça.
Madalena vai até o pequeno armário e tira dali uma algema e um chicote.
- Vira de costas.
Ela algema Dorival.
- Você tem o pior cheiro do mundo. Que nojo! Cheiro de lixo!
Madalena finalmente pega o chicote e começa a bater em Dorival, que não emite um som sequer.
- Isso mesmo, fica bem quietinho!
As chicoteadas continuam.
- Ajoelha.
Dorival obedece.
- Implora por perdão. Vai. Pode falar agora. Implora por perdão.
- Desculpa. Me perdoa. Me desculpa, me desculpa.
- Não para.
- Me desculpa, me desculpa, desculpa, desculpa.
E isso dura alguns minutos. Mais chicoteadas. A pele branca de Dorival agora tem marcas vermelhas e até mesmo roxas. Madalena vira o rosto de Dorival para ela.
- Você se arrepende, seu nojento? Você se arrepende?
- Eu me arrependo. Me perdoa. Eu não sei onde eu estava com a cabeça. Me perdoa. Você era a melhor para o país. Eu sei disso hoje.
- Nojento!
Madalena cospe em Dorival.
- Porco, burro, idiota, traste, pervertido, horroroso, feio, terrível, miúdo e desgraçado! Você concorda ou não concorda?! Que você é um porco, burro, idiota, traste, pervertido, horroroso, feio, terrível, miúdo e desgraçado?!
- Eu concordo, eu concordo.
- Então me fala!
- Eu sou um porco, burro, idiota, traste, pervertido, horroroso, feio, terrível, miúdo e desgraçado.
Madalena bate na cara de Dorival, mas a máscara não sai do lugar. Por trás do rosto impresso em papel, os olhos azuis observam com atenção os castanhos de Madalena.
- Eu tenho nojo de você. Você é um desperdício de vida. Você é o pior que existe no mundo. Concorda?
- Concordo.
Meia hora se passou.
Ela encara Dorival em silêncio. Tira sua máscara e acaricia seu rosto antes de dar outro tapa. E mais um. E outro.
Dorival chora. Ele não chora, ele cai em soluços. Seu corpo inteiro treme enquanto ele se entrega ao chão e fica ali encharcando o tapete verde da 25 de março com as lágrimas. Madalena faz um certo carinho em suas costas. Deixa ele chorar por mais cinco minutos.
- Deu.
Dorival rapidamente levanta, coloca suas roupas e deixa os R$200 reais em cima da bíblia.
Madalena tem 20 minutos até o próximo cliente chegar.