Bruna Pinhati
4 min readMar 3, 2021

diferente do meu apartamento, a rua está quente. o sol consegue me aquecer em instantes e logo esqueço do frio que me acompanha todos os dias dentro do imóvel do segundo andar. com um pouco de dificuldade respiro fundo. mesmo com essa máscara me tapando o nariz, sinto a diferença do ar. vento e calor, que bom ter a confirmação de que vocês ainda existem.

a rua está triste. carrega um tom acinzentado. só consigo ver os olhos das pessoas e todos os que vejo olham para baixo porque preferem encarar o chão aos rostos também cobertos. que droga de momento. período de introspecção para a humanidade é o caralho. quase consigo tocar o medo tamanha sua presença e faço questão de encarar todos os olhos que me cruzam enquanto estou dentro do ônibus. a única coisa que ouço é o som do joguinho de celular da mulher atrás de mim. toca uma música feliz toda vez que ela conquista um ponto e pelos sons vou acompanhando seu progresso até chegar no décimo quarto ponto: é aqui que eu desço.

mais olhos incertos, alguns medrosos e outros até julgadores. todo mundo que está na rua não deveria estar e boa parte sabe disso. cruzo com uma mulher que passeia com o cachorro: ela tem uma desculpa visível e eu não. não carrego sacolas de mercado, de farmácia e nem um cachorro. carrego só uma mochila azul nas costas e isso não me dá o direito de circular por aí desse jeito. sou uma irresponsável, não tenho medo da morte — da minha e nem de ninguém. eu não me importo porque é quase que inteiramente verdade: não tenho medo da minha morte física, mas da mental sim. e é por isso que me exponho, que pego um ônibus e ando três quarteirões até chegar na casa dele. é por isso que coloco a mão no portão do prédio, que espero o porteiro me anunciar e divido o elevador com essa mulher que poderia muito bem ter esperado eu subir primeiro já que ela chegou depois de mim.

quando chego ele me faz tirar os sapatos e descalça caminho até o banheiro, tiro toda a minha roupa, sinto a água com sabonete phebo me limpar e perfumar. toda a preocupação vai direito para o ralo. até os dentes eu escovo. sem vírus, sem medo, sem ninguém para me julgar. aqui o espaço é seguro e beira o mágico porque nada pode me atingir. daqui a pouco ele entra no banho comigo e beija meu pescoço e aí não existe mais nada do que existe lá fora. aqui dentro é outra coisa. mas minutos demais se passam e percebo que ele não vem. me enrolo na toalha verde que já é minha e o encontro sentado no sofá, mãos e pernas cruzadas. ele me olha por cima dos óculos redondos e dá aquele sorriso do “precisamos conversar”. ai, merda. que merda.

pego minha mochila que cheira a álcool depois de desinfetada e de lá tiro uma nova calcinha que me serve de roupa para ficar em casa junto com a camiseta dele que já virou minha — também verde. sento ao seu lado e ignoro todo o clima já estabelecido, coloco minha cabeça em seu ombro, entrelaço minha mão na dele como quem diz “hoje não. agora não e nem depois” e por incrível que pareça, funciona. ele me beija e nossas língua dançam uma dança triste mas esperançosa. eu deito no sofá de segunda mão e sinto o molhado dos meus cabelos encharcando tudo mas ninguém ali se importa. a necessidade de fazer o mundo sumir é mais urgente e só conseguimos fazer isso quando sentimos a pele mais íntima em contato uma com a outra. suas mãos sabem exatamente o que fazer e me percorrem sem medo nenhum de nada e é essa sensação que busco toda vez que o encontro. é o íntimo virando o centro de tudo mais uma vez, nossos corpos se comportando como se estivessem no olho de um furacão, o fogo tomando conta de cada célula fazendo com que a explosão seja inadiável. eu estou completamente entregue, vulnerável até o último fio de cabelo encharcado e sinto que juntos conseguiríamos incendiar todo esse prédio tamanho fogo criado por nossas fricções. e aí tudo faz sentido. por uns cinco segundos, tudo faz sentido.

depois nada faz.

na cozinha ele prepara um café enquanto o observo em silêncio. eu já o perdi. mas me recuso a aceitar então volto para o sofá ainda quente porque aqui ele ainda era meu. ele se senta a minha frente, no chão. a xícara branca que ele tanto adora, aquela com desenhos de folhas amarelas, me atinge como uma flecha certeira e é dela que vou lembrar sempre que me pegar pensando nesse momento que antecedeu o inevitável. “não está funcionando”. não, é claro que não está.

nadei atrás dele sabendo que estava engolindo muita água e que uma hora o afogamento seria fatal. e foi ali que a água cobriu minha cabeça. esperei por aquele momento por tempo demais, o momento em que ele me deixaria para trás e continuaria seu nado e eu, já enfraquecida e terrivelmente cansada, não resistiria. aceitei o veredito e não disse nada, mas também não saí do lugar. o silêncio fez presença por um tempo exageradamente longo e eu só escutava seus goles no café. acompanhei o seu progresso e assim que ele pousou a xícara no chão ao seu lado, tomei forças e levantei. o mundo lá fora repleto de medo e frio me encara com metade do seu rosto coberto.

Bruna Pinhati

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